Strudwick - A Golden Thread
O texto astrológico versa sobre o Destino – esta potência. Antes de nascer, dentro da barriga do mundo, onde ficam as almas para nascer, lá estivemos todos, prontos, inacabados, afoitos ou em paz, para voltar. Para voltar a andar, a narrar. Diante das Moiras, Cloto, Láquesis e Átropos – as fiandeiras – o que se discute é o tipo de história, qual mote narrativo principal a viver e também os temas secundários imprescindíveis para o desenrolar da história principal. Roteiros roteiros roteiros roteiros roteiros (Oswald de Andrade).
Cloto, Láquesis, Átropos, também chamada de Nona, Décima e A Morta, tecem os fios, as tramas, as teias do Destino, Sorte ou Fortuna. A vida é um fio. A vida é por um fio. E a Sorte são roladas em três fusos. Os fios que as Moiras seguram, torcem e cortam provém de um mesmo novelo: a alma do mundo (anima mundi).
O mapa natal é a trama feita por Láquesis (a que prepara o tipo do fio da vida), Cloto (a que distribui a sorte e torce o fio para marcá-lo com particularidades) e Átropos (a que corta o fio, determinando o tempo de vida). O mapa astral, o bordado, é uma espécie de rezo que produz uma imagem principal (defendo que a função do astrólogo é alcançar a evocar essa imagem central). As três senhoras do Destino tecem, torcem, escrevem narrativas sobre o colo da Necessidade – Ananque – mãe das Moiras. As Moiras têm mãe. “A sorte que tens, és a que necessita”, é o que está gravado, como um selo, em todos os rezos. E para guardar e zelar o destino a cumprir, acompanhando a alma a encarnar, o gênio, o daemon, o anjo da guarda ou, como o astrólogo árabe Ibn Ezra preserva em seus escritos, o Almutem Figurae – o Gênio da Natividade. Aliás, essa é a única escolha que a alma está autorizada a exercer antes de nascer, segundo Platão: escolher o espírito que o acompanhará na travessia da vida. Dizer que a carta tem um astro, um gênio, uma potestade que a governa, equivale dizer que em cada biografia há um organizador, um narrador, ou ainda, em termos mais contemporâneos, em cada círculo celeste há quem mova a história, o espírito que narra a história nas entrelinhas. Há um gênio que nos acompanha, promovendo o nosso caminhar, mesmo que outras instâncias do ser não goste ou entre em conflito com o próprio gênio – a vida é uma guerra entre céus. Em outras palavras, o guardião do destino tanto é o caminho, o mote e o fio da meada, quanto seu protagonista e zelador – e sua máscara. História contada, roteiros escritos, sorte lançada, a alma está pronta para ganhar um corpo e um sopro. Antes de cair no mundo, passa-se o fio da meada por debaixo do trono da Necessidade – não há caminho que não esteja sob o signo da Necessidade – e pronto, estás pronto para esquecer tudo logo em seguida. A água do rio Ameles tem este poder. Toma-se um gole da água do esquecimento para tomar o barco acompanhado do barqueiro e do daemon, gênio, espírito, testemunha do destino a cumprir. E a vida vem pelas correntezas do útero.
Tudo, absolutamente tudo, é amarrado, traçado, tramado antes de nascer. Tudo é previamente bordado: o corpo, a prosperidade, o pai, a mãe, os irmãos, os filhos, a fortuna, o casamento, a vocação, os inimigos e até o tempo de percurso, segundo Platão e todas as filosofias que sustentarão as astrologias antigas. A noção de indivíduo, é claro, se perde dentro desta teia que se une a outras teias que, por sua vez, se unem a outras teias e a outras a outras a outras… “A minha sorte é sua, a sua sorte é minha”. Cada um é um nó numa teia familiar, na vida de alguém e, ao mesmo tempo, no destino de uma cidade. Aí uma pessoa em formação (tornar-se pessoa vale uma existência), procura um astrólogo. O faz na tentativa, quase sempre afoita, raramente em paz, de lembrar o que um dia, num tempo mítico, diante de Ananke e das Moiras, e de outras almas sedentas, que tipo de biografia foi tecida, bordada, costurada, amarrada. O astrólogo como o duplo do mensageiro das Velhas bordadeiras. Não lembramos da história previamente escrita porque não suportaríamos toda sua potência. Não lembramos do destino a percorrer porque não teria graça alguma saber sobre o que narra o livro antes de escrevê-lo. Não lembramos da vida a seguir porque faz parte da trajetória descobrir os seus segredos e ensinamentos. Viver, cura. E uma coisa é certa: o destino é tecido no colo da Necessidade e temos, na vida, lampejos deste traçado – por isso também a importância da epifania (ou hierofania?) neste ofício de tradução das escolhas. O protagonista da história nasce de um jeito e, no final do seu caminho, após sofrer alterações, já é outro embora sempre o mesmo – este é o nosso herói ou ator. Assim sendo, leitura de uma natividade não é sobre o futuro, mas sim do passado já vivido em outra instância, a ser decifrado, incorporado, dramatizado, através de um corpo e suas circunstâncias sob à régia do tempo. A escuta da leitura de um mapa é um relembrar, portanto. A tradução de uma carta natal é um conectar-se com esta lembrança, um desembaraçar. Gosto de imaginar que algum ponto do bordado as Moiras deixaram por completar e nos entregaram linha e agulhas. Quando o tradutor do céu toca os nós da memória da narrativa, conecta a pessoa ao seu caminho. Todas as técnicas astrológicas servem para somente ajudar o astrólogo nesta complexa tradução. O mapa astral é um registro mnemônico, em suma. Um registro da memória da alma do mundo. Quanto mais fidedigno à memória da alma do mundo – não temos uma alma, estamos contidos na alma do mundo – pouco o astrólogo atrapalha o errante. Por isso o astrólogo, aos poucos, tende a falar pouco e a escutar mais. A entusiasmar mais. Falar é mexer nas teias. E eu me pergunto: o que faz uma alma desejar ser um astrólogo, um tradutor de histórias terrenas, auxiliando-as ou não a se tornarem pessoa, vida, biografia, corpo e consequência? Que gênio ou iuno o destina? Existir, a que será que se destina?
João Acuio
(ano 2013)
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