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Foto do escritorEmanuel Santos

Um tarot para Sandman - texto 5





UM INCÊNDIO. O BRILHO DE UMA LÂMINA. UM CORAÇÃO DE VIDRO.

Segunda feira, dia de mais uma Conversa Cartomântica no Saturnália. Estaríamos prontos? Hoje é o dia de Desejo dos Perpétuos, a mais forte idiossincrasia que você encontrará na vida. Se tiver sorte. Ou não. Esse texto possui spoilers. Leia, se assim desejar.


Desejo estava certo. Também indigna de confiança, amargo, perigosa e cruel, mas certa. Seria melhor pra você deixar tudo como estava.

Destruição | Sandman #48


Começamos, por ora, de onde paramos no texto anterior. A principal definição de Desejo é dada por Destruição no arco Vidas Breves, mas Desejo aparece originalmente no arco Casa de Bonecas. Morpheus percebe que seu reino esteve à mercê enquanto esteve fora e um Vórtice nasceu. E cobra o preço – do Vórtice e de Desejo. Enquanto Morpheus é um dos Quatro Antigos, anteriores aos Anjos, Desejo integra os três Sem Fim que vieram à existência quando seres inteligentes afloraram no Cosmo. E aí reside a diferença entre seus domínios e habilidades.

Se eu tivesse uma crítica a Sandman, seria relativa à aparência de Desejo. As primeiras representações são extremamente caricatas, frente ao potencial de sua natureza (1). O mais perto que posso chegar de descrever Desejo está em uma pergunta, com uma condição: Deixe sua moral, sua ética, seus bons costumes para trás. Elas não serão necessárias aqui, e é bom que você siga o fluxo. Afinal de contas, Desejo é uma tropa de cavalos selvagens. Ou você corre junto, ou é atropelado e trucidado por patas velozes como a taquicardia dos amantes. Agora responda, não para mim, mas para si mesmo: quem seria o alvo de toda a sua dedicação? A quem você entregaria presas e garras, unhas e dentes, e como um cachorrinho se aninharia no colo? A quem você cede sangue e sêmen, umedece os lábios – todos eles? Quem... Ou o que?

Há alguma coisa que você anseia? Alguma coisa sexual? Alguma coisa preciosa? Alguma coisa especial? QUALQUER COISA?

Então você sentiu, está lá... No anseio, na luxúria: o hálito de Desejo, o afago do Limiar.

Sandman #10


Ali, na ânsia, está Desejo, sorrindo maliciosamente – e o sorriso de Desejo é brilhante e diáfano como o brilho em uma lâmina afiada. E há muito mais de afiado em Desejo do que se suporia: sempre o alvo de sua própria natureza, algoz e não vítima. Desejo é a descrição de paixão a primeira vista – dolorosa, inexorável, visceral. Nesse sentido, a melhor representação de Desejo só poderia vir do traço indecente de um dos maiores ilustradores eróticos de nossa geração: Milo Manara, autor também de um Tarô muito... curioso. Desejo, por Manara, possui seus traços delicadamente andróginos, próximos daquilo que faz o sangue correr mais rápido nas partes certas.

Afinal de contas, estamos falando com um mestre na arte de ilustrar o que não deveria ser dito. Desejo é a essência da dualidade. Inclusive, possui duas sombras: uma negra e uma iridescente, como o calor que sobe do asfalto após uma chuva de verão. Sua presença deixa um forte cheiro de pêssegos maduros no estio. Sabor de fruta mordida... Como lábios.

Enquanto seus irmãos e irmãs são machos e fêmeas de ideias envoltas em algo semelhante à carne – força feita forma, para quem tiver olhos para bem ler – Desejo é sempre dual. Sempre.

[Lembre-se a quem você entregou as presas e garras. Lembre-se do colo em que se aninhou. Perceba que nunca houve segurança alguma de que você estivesse certo do que estava fazendo – e continua não havendo] Outra característica inegável são seus olhos fulvos, felinos, melífluos como sua voz. E aqui se faz necessária uma nota sobre fontes: Cada um dos Perpétuos, como os demais personagens da DC [e acredito que também hajam alguns na Marvel, mas tenho pouco referencial para afirmar de forma segura] possui uma fonte, e um balão, característicos, que aproximam nossa leitura visual do que seria a sonoridade de sua voz. Assim, a voz de Morpheus é negra como a noite, a de Delirium é uma aquarela iridescente, e a de Desejo...

Desejo fala de forma viperina, vulpídea. Sua voz, representada por uma fonte específica [se você souber, me conte; eu ainda não descobri], é a mesma usada para seres como Gabriel e Lucifer, no Selo Vertigo. Pensando sobre isso, é interessante pensar como Desejo lembra muito as definições de deidades que conhecemos – pois, mais cedo ou mais tarde, aspiramos ao Inefável, em qualquer forma que seja. Curioso como o mais próximo que você vai se aproximar de uma deidade nessa vida é o mais próximo que estará, na verdade, de Desejo. E vice-versa.

Evidentemente, os tocados por Desejo não são pessoas comuns. Não haveria meios de serem.


[Desejo] – A maioria das pessoas tem um querer bruxuleante como uma chama de vela. Você por sua vez, tem um querer como um incêndio na floresta. (...) [Donzela] – Vai me dar o que eu quero? [Desejo] – Claro que não. [Donzela] – Então o que você vai me dar? [Desejo] – Um sorriso. (...) [Desejo] – Você está marcada como minha, mas, de certa forma, sempre foi. [Donzela] – E o que você quer de mim? [Desejo] – Tudo. O que mais poderia querer?

O que experimentei de Desejo | Noites Sem Fim


O Reino de Desejo é o Limiar. O Limiar é o ponto no qual está separado o “eu quero” do “o que eu fiz?!”. Em seu Reino, Desejo, por ora (2) mora só. O Reino é totalmente ocupado por uma representação colossal da aparência que esteja usando no momento – o que, levando em consideração que os Perpétuos são razoavelmente onipresentes, em função de quem os observa ou evoca, torna essa representação lapidada como um diamante, iluminada na face que representa o que um observador vê.

Imagine um diamante iluminado em todos os seus quilates, refratando e refletindo luz como os olhos dos amantes. Assim é o Limiar em sua totalidade.

“Entretanto, dado o temperamento de Desejo, só há um lugar em toda a catedral de seu corpo que lhe serve como lar” [Sandman #10]: O coração. Mas costuma usar todos os espaços na descoberta de si.

(Desejo nunca se satisfez com um único sexo. Ou apenas uma de qualquer coisa - exceto, talvez, o próprio Limiar)

Sandman #10


Sua primeira carta não é nenhuma outra que não o Décimo Quinto Arcano. Aqui temos Rex Mundi, o Príncipe deste mundo, o Senhor dos Sete Pecados Capitais e todos os vícios que os entrecruzam. Afinal de contas, Desejo é tudo o que você sempre quis. Tudo. Embora o aspecto sexual seja privilegiado – e aqui cabe um cioso comentário: a mesma motivação do príncipe encantado é a do estuprador – ira, preguiça, gula, avareza, orgulho e inveja também estão no mesmo altar que a luxúria. E Desejo se assenta sobre o trono de todos eles.

Sua segunda carta é a anátema da primeira. Temperança, o cuidado com os excessos, como a mesma lâmina que fere é a que opera, cirurgicamente: o que importa é o limiar entre um e outro uso. Desejo é Alquimia, Primum Mobile, a força de coesão entre as moléculas, que permite que os elementos se somem e se estruturem. É a força primal da natureza. Com asas e o dourado do Sol nos olhos.

E é em sua forma angelical que a terceira de suas cartas mostra a face à luz. Desejo, Enamorado de si mesmo, regente do Luminar, em cujo coração faz morada, de duas sombras, de dois [mil] sexos, de sabor ardente como o vinho, coração de vidro, cruel como a lâmina em mãos hábeis. Saiba escolher e escolha bem. Se assim desejar.

Devo alertar que conseguir o que deseja e ser feliz são duas coisas bem diferentes.

Desejo | Noites Sem Fim.


Tive o cuidado de não tratar Desejo por nenhum gênero, em nenhum momento deste texto. Preste atenção: você completou as lacunas que deliberadamente eu deixei com o gênero que você Deseja.

Até a próxima segunda feira.

(1) Entretanto, Sandman é uma história contada pela ótica de Morpheus. Talvez seja assim que ele veja Desejo. Talvez. (2) É uma das lacunas laboriosamente deixadas por Gaiman para uma explicação futura, que talvez nunca venha. Quem sabe.


Emanuel J Santos


P.s.: este texto foi publicado originalmente aqui: https://www.facebook.com/Saturnalia/photos/a.10150369632207293/10155605855642293/; a imagem é de autoria do Emanuel; o Corvo da Saturnália foi criado pelo Gabriel Breviglieri.

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